A audiência pública promovida pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) revelou diferentes perspectivas sobre o papel da Apple e do Google no ecossistema digital de dispositivos móveis. As discussões giram em torno da necessidade de aplicar medidas concorrenciais distintas para cada empresa. O Cade agora precisa analisar essas opiniões divergentes para determinar se as políticas das lojas de aplicativos e os métodos de pagamento violam as leis de concorrência no Brasil.
O debate foi motivado por três processos e um recurso que questionam se Apple e Google usam seu controle sobre os sistemas operacionais para favorecer seus próprios serviços, tanto na oferta de aplicativos quanto nas transações financeiras. A questão ganhou força após eventos que afetaram principalmente a Apple no último ano.
O processo contra a Apple foi aberto após uma representação do Mercado Livre, que acusou a empresa de abuso de posição dominante. O marketplace alega que a Apple impede que desenvolvedores distribuam bens e serviços digitais de terceiros, ou seja, que criem lojas de aplicativos alternativas.
Segundo o Mercado Livre, essa prática fecha o mercado, impedindo que a plataforma e outros agentes econômicos ampliem suas ofertas de bens e serviços digitais de terceiros e, assim, concorram com a própria Apple.
Mercado Livre acusa Apple de inibir desenvolvedores
O Mercado Livre também argumenta que os termos impostos pela Apple restringem o crescimento de desenvolvedores de bens e serviços digitais, já que a distribuição massiva de seus conteúdos é crucial. A plataforma de e-commerce afirma que a proibição impede que esses desenvolvedores tenham acesso a canais alternativos de distribuição, limitando sua capacidade de competir com a Apple e de adquirir a escala necessária para amortizar seus investimentos.
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Em novembro do ano passado, ao instaurar o processo administrativo contra a Apple, o Cade exigiu medidas que garantissem a liberdade de escolha dos canais de distribuição e sistemas de processamento de pagamentos para compras dentro dos aplicativos (in-app) para desenvolvedores e usuários do sistema iOS. Essas ações seriam preventivas, enquanto o órgão investiga a conduta da empresa.
A Apple recorreu, alegando que não há base legal ou precedente válido no Brasil para concluir que a conduta em investigação configura uma infração antitruste. A empresa defende que suas políticas são necessárias para garantir a segurança e a qualidade dos aplicativos disponíveis na App Store.
A decisão sobre a Apple também impactou um processo similar contra o Google, que havia sido aberto em 2019. Na época, a investigação foi motivada pela condenação do Google na União Europeia por acordos com fabricantes e operadoras que implementavam a pré-instalação de determinados aplicativos do Google em troca de receitas com publicidade. A deliberação no Brasil sobre o caso do Google tem sido adiada.
Em janeiro deste ano, uma nota técnica do Cade apontou uma possível semelhança entre os temas investigados nos casos da Apple e do Google. Essa similaridade justifica a discussão conjunta dos processos na audiência pública, buscando uma análise abrangente das práticas das duas empresas.
O documento do Cade afirma que, diante de indícios de que o Google estaria adotando medidas semelhantes às da Apple, é necessário investigar os indícios de infração à ordem econômica. O objetivo é verificar a ocorrência das práticas e seus contornos, que, se comprovadas, podem ser enquadradas como ilícitos concorrenciais.
O Cade convocou a audiência pública com o objetivo de discutir os processos envolvendo as duas big techs e refletir sobre medidas que estão sendo tomadas em outros países para evitar a concentração no mercado. Foram citados exemplos como a Autoriteit Consument & Markt (ACM) da Holanda, a Competition and Market Authority (CMA) do Reino Unido e a Australian Consumer and Competition Commission (ACCC) da Austrália.
O que dizem Apple e Google sobre o Processo contra a Apple
A Apple foi a primeira a se manifestar na audiência pública, representada por Pedro Pace, diretor jurídico da empresa no Brasil. Ele iniciou sua apresentação com números da plataforma, buscando refutar a visão preliminar do Cade de que a empresa adota condutas anticoncorrenciais.
Pace explicou que a Apple cobra comissão apenas em aplicativos pagos ou que vendem bens e serviços digitais dentro do próprio app. Ele afirmou que 85% dos aplicativos não se encaixam nesse grupo, e que a maioria dos 15% restantes tem comissão reduzida. O executivo destacou que, embora a App Store promova aproximadamente R$ 1,1 trilhão de dólares em faturamentos e vendas globais anualmente, 90% desse valor é destinado a desenvolvedores e empresas que não pagam comissão à Apple.
Durante a exposição, Pace ressaltou que a opção por não permitir o sideloading (instalação de aplicativos fora da App Store) é motivada por questões de segurança. Segundo ele, o controle também é importante para barrar conteúdos como pornografia ou que sejam usados para cometer fraudes. O diretor afirmou que, só em 2023, a Apple removeu ou bloqueou mais de 35 mil aplicativos da App Store por não conformidade com as políticas antifraude, evitando operações irregulares que somariam aproximadamente R$ 10 bilhões de reais.
A empresa defendeu que o Cade evite importar um regime estrangeiro que iniba a capacidade da Apple de oferecer seus produtos e serviços aos brasileiros, ou que prejudique uma economia digital que beneficia significativamente o país. A Apple argumenta que suas políticas são essenciais para manter a qualidade e a segurança do seu ecossistema.
O Google, representado pela executiva Regina Chamma, ressaltou que a empresa trabalha com um “modelo aberto”, que só o Android oferece, além da variedade de fabricantes e menores preços. Ela mencionou que empresas brasileiras como Positivo e Multilaser oferecem dispositivos Android a partir de R$ 300, e que o sistema operacional ajudou a democratizar o acesso à internet no Brasil, que se dá principalmente por meio de dispositivos móveis.
A empresa também destacou que o Google Play não é a única loja de aplicativos disponível para Android. Regina Chamma citou a Samsung Galaxy Store e a Get Apps da Xiaomi, entre outras, afirmando que essa liberdade de escolha e compatibilidade garantem que os desenvolvedores não fiquem “aprisionados”. Ela pediu que o Cade reconheça a competição entre Android e iOS, mencionando que ambos os sistemas operacionais lançam novas versões com recursos de privacidade aprimorados e conectividade via satélite.
Especificamente sobre o mercado brasileiro, o Google citou um relatório da Access Partnership produzido em 2023, que estimou R$ 4 bilhões em receitas a desenvolvedores por meio do Google Play. A empresa argumenta que o Android oferece mais flexibilidade e oportunidades para os desenvolvedores do que o iOS.
Em relação ao sideloading, a representante do Google comentou como um diferencial positivo. Ela explicou que os desenvolvedores podem distribuir seus aplicativos diretamente aos usuários, uma escolha e flexibilidade que só são possíveis no Android. Para a segurança, a empresa argumenta que há APIs disponíveis que ajudam a detectar comportamentos suspeitos nos aplicativos.
Outras visões sobre o Processo contra a Apple
A Epic Games, que trava uma disputa jurídica contra Google e Apple desde 2018, criticou ambas as empresas. O diretor sênior de desenvolvimento de jogos, Mauricio Longoni, ressaltou que, após a aprovação do Digital Markets Act, a Epic pôde lançar a Epic Games Store nos dispositivos iOS na União Europeia, mas que Apple e Google ainda se recusam a cumprir tanto o texto quanto o espírito da legislação europeia.
Longoni afirmou que Apple e Google estão impondo aos usuários experiências de instalação de baixa qualidade, sobrecarregando-os com um processo longo e com “scare screens” (telas assustadoras), que seriam etapas desnecessárias, configurações confusas nos menus dos dispositivos e mensagens enganosas ao longo de todo o processo. A crítica também se estende aos meios de pagamento, já que desenvolvedores são obrigados a utilizar os sistemas de pagamento da Apple ou do Google para compras de bens digitais, sujeitando-se a termos e taxas de até 30%.
A Epic Games argumentou que a medida preventiva imposta pelo Cade permitiria que a empresa entrasse no mercado brasileiro com a Epic Games Store para dispositivos móveis, oferecendo termos mais favoráveis aos desenvolvedores do que as lojas de aplicativos da Apple ou do Google. A empresa acredita que a concorrência é benéfica para os consumidores e para o mercado de desenvolvimento de jogos.
A Match Group, empresa do Tinder, também classificou as taxas cobradas pela Apple como “abusivas”. A advogada da empresa, Priscila Brolio, afirmou que o Match Group não está propondo que a Apple não seja remunerada pelos investimentos que faz na App Store, em segurança e privacidade, mas que nada justifica que o modelo de negócio da Apple se aproprie do fundo de comércio dos desenvolvedores e das informações de seus clientes.
Representando a plataforma do setor financeiro, Zetta, Eduardo Lopes ressaltou a relevância especificamente para os usuários da Apple, que possuem um perfil de renda e de consumo superior aos consumidores de Android. Ele complementou que a combinação entre a pouca mobilidade dos consumidores (migração entre sistemas) e a dependência dos desenvolvedores de terem que oferecer seus aplicativos nas duas plataformas permite que a Apple tenha uma capacidade de impor restrições muito rígidas aos desenvolvedores e criar barreiras artificiais para a oferta de produtos e serviços de terceiros que possam concorrer dentro do seu ecossistema digital.
Lopes também chamou a atenção para os impedimentos no pagamento por aproximação na Apple, que possui o Apple Pay como carteira padrão, e alertou para os impactos futuros na implementação do Pix por aproximação. Ele criticou que, apesar dos esforços do Banco Central e da adoção pela população, as tarifas e o esforço de desenvolvimento requeridos pelas soluções proprietárias da Apple tornam economicamente inviável a oferta de Pix por aproximação em dispositivos iOS.
Questionado, o relator do recurso da Apple, conselheiro Victor Oliveira Fernandes, não indicou uma previsão para levar o caso a uma deliberação. O Cade continua a analisar as informações e os argumentos apresentados na audiência pública para tomar uma decisão sobre o caso.
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Via Mobile Time